Por Simone Ishibashi
Certo dia percorrendo as
redes sociais me deparei com um debate no qual um jovem afirmava que entre os
líderes revolucionários russos sua preferência era por Stalin, porque este era
“verdadeiramente nacionalista”. Esta afirmação me deixou, como se diz coloquialmente,
“encafifada”. Afinal, se um revolucionário marxista é mais eficaz se for
nacionalista, por que Marx encerrou o Manifesto Comunista com a célebre
exortação de “trabalhadores do mundo uni-vos”? Ademais, trata-se de um debate
amplamente documentado que Stalin ao decretar a teoria do socialismo num só
país como guia orientador da URSS e de sua política externa buscava assegurar a
dominação do país para si, e impedir que se desenvolvessem novas ondas
revolucionárias internacionais que ameaçassem o seu poder.
A ascensão da ultradireita
ao governo do Brasil reacendeu junto a setores que hoje despertam para a vida
política, uma espécie de embelezamento da figura de Stalin, que emerge como uma
espécie de duplo invertido do amante do imperialismo, Bolsonaro. Um Stalin
envolto em uma falsa imagem de combatente anti-imperialista, que ignora que
quem venceu o nazismo na Segunda Guerra Mundial foram os trabalhadores
soviéticos, e não a estratégia do alto mando stalinista, que havia pactuado com
Hitler um acordo de não-agressão absolutamente escandaloso.
O que tais setores, que
passaram hoje a se referenciar em Stalin, expressam de correto é a
sensibilidade de que a reversão da entrega de tudo que o Brasil possui de mais
rico ao imperialismo não se dará pacificamente. No entanto, é fundamental e
urgente retomar parte dos debates sobre a falência estratégica que Stalin
representa por, dentre outras questões, haver sido um detrator do fundamento do
internacionalismo revolucionário. O que muito embora se busque distorcer, foi
um dos elementos que levou a URSS de Stalin a coexistir pacificamente com o
imperialismo estadunidense por décadas, ao romper com o internacionalismo
revolucionário, um dos princípios inclusive mais caros para o marxismo desde
que este emergiu como corrente revolucionária dos trabalhadores.
Neste breve artigo
tratamos então de oferecer algumas linhas sobre o papel do internacionalismo
revolucionário como algo vital para os marxistas, que transcende muito o
caráter de mera solidariedade entre os povos, sendo justamente uma das bases
estratégicas mais fundamentais para o triunfo da revolução socialista. E mais,
sobre como justamente este aspecto separou Trótski, como um dos que mais
profundamente entendeu a importância estratégica do internacionalismo, de
Stalin, que ao elaborar a teoria da revolução num só país localiza-se na
antípoda do marxismo.
O
sistema capitalista internacional como um todo uno e indivisível
Lênin foi um dos
responsáveis por indicar em sua obra O imperialismo, fase superior do capitalismo
de 1916 que a internacionalização das relações de produção havia alcançado um
patamar até então inédito. A internacionalização do capital foi responsável por
transformar radicalmente o panorama do sistema internacional. Na virada do
século XIX para o século XX, Lênin aponta como a unidade entre o capital
bancário e capital industrial, gerando o primado do capital financeiro,
introduzia uma nova forma de competição pela exportação de capital entre as
nações no plano internacional. Assim, nações imperialistas passariam a dominar
as nações semi-coloniais ou dependentes, não mais transformando-as diretamente
em colônias como havia sido durante todo o período predecessor, mas em mercados
a serem explorados através da exportação de capital.
Isso criou uma
interdependência entre as nações jamais vista, e anulou a noção de que haveriam
países maduros para a revolução socialista, enquanto outros deveriam passar por
uma longa etapa de desenvolvimento capitalista para só então se postular a ser
palco de uma revolução socialista. A Revolução Russa de 1917 foi uma grande
comprovação desta tese. Desde então a internacionalização da economia, que faz
com que a classe trabalhadora internacional deva enxergar-se como uma única e
só classe, opondo não povos a outros povos, mas trabalhadores às classes
detentoras em nível internacional, só se elevou. A “globalização”, que deve ser
entendida como décadas de ofensiva neoliberal sobre os trabalhadores em todo o
mundo, só aprofundou atualizando a indicação de Marx e Engels no Manifesto
Comunista de que as lutas dos trabalhadores são nacionais em sua forma, mas
internacionais em seu conteúdo.
A
teoria da revolução permanente como continuidade do marxismo revolucionário
Como continuador das teses
elaboradas por Marx e Engels, e posteriormente Lênin, Trótski entendia a
constituição do sistema internacional, marcado pela relação desigual existente
entre nações imperialistas e nações atrasadas, semicoloniais e dependentes como
parte de um processo único. Pensando a partir desta totalidade dialética,
Trótski aponta como nos países de desenvolvimento capitalista atrasado, como
era a Rússia naquele momento, a burguesia nascia vil e covarde, submetida ao
imperialismo. Não seria, portanto, capaz de realizar as tarefas da sua própria revolução
burguesa tal como fizera na França em 1789. Caberia à classe trabalhadora
realizar as tarefas democráticas tais como a emancipação nacional em relação ao
imperialismo, ou a repartição das terras.
O ex-general do Exército
Vermelho e presidente do soviete de Petrogrado em 1905 entendia então que cada
revolução socialista “nacional”, deveria ser encarada como parte da luta pela
destruição do sistema capitalista como um todo. E isso só seria alcançado com a
expansão internacionalista da revolução. Em suas palavras:
O triunfo da revolução
socialista é inconcebível nos limites nacionais. Uma das causas essenciais da
crise da sociedade burguesa reside em que as forças produtivas por ela criadas
não podem se conciliar com os limites do Estado nacional. De onde surgem as
guerras imperialistas por um lado e a utopia dos Estado Unidos burgueses da
Europa por outro. A revolução socialista começa no terreno nacional,
desenvolve-se na arena internacional e completa-se na arena mundial. Assim, a
revolução socialista torna-se permanente num sentido novo e mais amplo do
termo: só está acabado com o triunfo definitivo da nova sociedade sobre todo o
nosso planeta.
Desta maneira, a tomada do
poder pela classe trabalhadora deveria ser parte da expansão internacionalista
da revolução. Sem isso essa jamais se completaria, pois não é possível
construir o socialismo nos limites nacionais como uma ilha cercada por países
capitalistas. Cedo ou tarde, como ocorreu na URSS, as conquistas da revolução
sucumbem, caso sua dinâmica de completar-se internacionalmente não se dê. Tanto
na URSS como na China o processo de restauração capitalista deu-se sob a
anuência das burocracias dirigentes. Ainda que examinar cada um destes
complexos processos não seja possível neste artigo, nos aprofundemos em como o
nacionalismo stalinista ao contrário de garantir a defesa da URSS criou as
bases para o retorno do capitalismo.
O
socialismo num só país de Stalin e a coexistência com o imperialismo
Os que defendem que o
legado de Stalin deve ser revivido costumam evocar a vitória da URSS contra
Hitler na Segunda Guerra Mundial. Mas ignoram que a própria eclosão dessa
enorme catástrofe da história teve na traição de Stalin uma de suas peças mais
importantes, e sem a qual talvez a própria Segunda Guerra sequer tivesse
ocorrido. Além da derrota de processos revolucionários internacionais, como a
revolução chinesa de 1926 e a revolução espanhola da década de 1930, esta
reorientação estratégica de Stalin marcou tanto o pacto Ribentropp-Molotov
firmado com Hitler, como a coexistência com o imperialismo após a Segunda
Guerra Mundial. O pacto com Hitler foi quiçá uma das maiores traições de Stalin
à classe trabalhadora internacional, com o seu comprometimento a não agredir a
Alemanha nazista. Assim, ao invés de armar as forças revolucionárias alemãs
para resistir ao nazismo, Stalin o legitima desarmando completamente a classe
trabalhadora daquele país, abrindo caminho para a devastação sem par da Segunda
Guerra Mundial.
Em 1939, Stalin já havia
expulsado e perseguido boa parte da oposição de esquerda, acusando-a justamente
de colaboração com os nazistas e o imperialismo. Trótski lembrava a todos que:
Durante os últimos três anos, Stalin chamou
todos os companheiros de Lênin de agentes de Hitler. Ele exterminou a elite da
equipe do general. Ele matou, exonerou, ou deportou cerca de 30.000 pessoas,
todos sob a mesma acusação de serem agentes de Hitler e seus aliados. Depois de
ter desmembrado o partido e decapitado o exército, agora Stalin está colocando
abertamente sua própria candidatura para o papel de ... principal agente de
Hitler. [1]
O que residia por trás
disso era a compreensão de que existe uma relação íntima entre a guerra e a
revolução. Tal relação havia se provado durante a revolução russa de 1917, que
ocorrera em meio à Primeira Guerra Mundial. Temendo que uma nova onda revolucionária
internacional culminasse em uma revolução política dos trabalhadores contra seu
domínio burocrático, Stalin aprofunda ainda mais sua desastrosa plataforma de
socialismo num só país. Como assinala Trótski, novamente, sobre o duplo golpe
sofrido pela classe trabalhadora internacional pelas mãos de Hitler e Stalin:
Ninguém, sem excluir Hitler, deu golpes ao
socialismo tão mortais quanto Stalin. Não é difícil surpreender, uma vez que
Hitler ataca organizações da classe trabalhadora de fora, enquanto Stalin o faz
por dentro. Hitler ataca o marxismo. Stalin não apenas o ataca, mas o
prostitui. Nem um único princípio permaneceu puro, nem uma única ideia foi
preservada. Os próprios nomes do socialismo e do comunismo foram cruelmente
comprometidos ... Socialismo significa um sistema social puro e limpo, adaptado
ao autogoverno dos trabalhadores. O regime de Stalin é baseado em uma
conspiração dos governantes contra os governados. O socialismo implica um
crescimento ininterrupto da igualdade universal. Stalin ergueu um sistema de
privilégios repugnantes. O socialismo visa o florescimento integral da
personalidade individual. Quando e onde a personalidade do homem foi tão
degradada quanto na URSS? O socialismo não teria valor além das relações
desinteressadas, honestas e humanas entre os seres humanos. O regime de Stalin
permeou as relações sociais e pessoais com mentiras, arrivismo e traição. [2]
Durante a vida de Lênin a
III Internacional partia de que a expansão da revolução socialista iniciada na
Rússia para um país central da Europa, em especial na Alemanha onde as
tendências revolucionárias eram mais abertas, era uma condição essencial para
assegurar sua consolidação. Mas paulatinamente, conforme Stalin se apodera do
poder na URSS essa orientação estratégica à qual nenhum marxista se oporia até
então é substituída pela teoria do socialismo num só país. Como Trótski criticou
na ocasião:
A nova doutrina (do
socialismo num só país) diz: pode construir-se o socialismo sobre a base de um
Estado nacional sob a condição de que não se produza uma intervenção armada.
(...) O fim é evitar a intervenção, com efeito isto garantirá a construção do
socialismo, o problema histórico fundamental estará resolvido. A missão dos
partidos da Internacional Comunista toma desta maneira um caráter secundário:
preservar a URSS de intervenções, e não lutar pela conquista do poder. Trata-se
evidentemente, não das intenções subjetivas, mas da lógica do pensamento
político.
Na saída da Segunda Guerra
Mundial tal “teoria” levou a que Stalin pactuasse com os Estados Unidos e a
Inglaterra a divisão do mundo em zonas de influência, nos Acordos de Yalta e
Potsdam. Dessa maneira para Stalin o internacionalismo revolucionário é
substituído pela lógica dos Estados nacionais, marcada por acordos, que ainda
que pudessem ser tensos e instáveis como de fato se mostrou durante a Guerra
Fria entre URSS e EUA, dão-se a partir da renúncia acordada por Stalin da
expansão da luta de classes e aceitação da existência do imperialismo. Longe de
ser “o pai dos povos”, Stalin vela e cerceia cuidadosamente a luta de classes
internacional para que esta não fira os interesses do imperialismo
estadunidense.
Tanto é assim que Mao Tsé
Tung após a revolução chinesa de 1951 estabelece uma tensa relação com Stalin,
chegando posteriormente a aproximar-se dos EUA contra a URSS. Isso ocorre
porque a relação entre a China e a URSS se inseriram absolutamente por dentro
da lógica dos Estados nacionais, não servindo como ponto de apoio para a
expansão mundial da revolução socialista.
Isso é observado pelo
filósofo e historiador francês Raymond Aron, quando aponta que:
Quanto mais se “nacionaliza” um partido
comunista, mais se conduz como gestor dos interesses do Estado e não como
missionário da luta de classes. A “nacionalização” dos partidos que assumiram a
responsabilidade de impérios históricos quebrou a coerência da área socialista,
contribuindo para aproximar as relações interestatais, no sistema mundial de
hoje a relações de tipo clássico, ou seja a reduzir o elemento ideológico, a
dimensão da guerra civil. [3]
Ou, dito em outras
palavras, o caráter de “defesa nacional” que o stalinismo assume não se dá em
um sentido marxista ou socialista, mas sob uma lógica de Estado-nação que
abdica na internacionalização da revolução, em nome de sua autopreservação.
Cedo ou tarde desemboca na restauração capitalista. Portanto, a ideia de que
Stalin e sua estratégia seriam as respostas consequentes aos interesses
nacionais contra o imperialismo é falsa, na medida em que aquilo que não avança
fatalmente retrocede, isto é, um país que almeja ao socialismo não pode
conquista-lo efetivamente imerso em um mar capitalista que é a economia e o
sistema internacional.
A
atualidade urgente do internacionalismo revolucionário
A crise social, política e
econômica que derivou da crise histórica do capitalismo de 2008, se abateu
sobre o mundo nos últimos anos levando a uma transformação importante do
ambiente político em distintos países. A decadência do capitalismo desde então tem
se expressado no surgimento de uma ultradireita racista, obscurantista e
xenófoba como Trump, e aqui com Bolsonaro, que ademais busca entregar o país ao
imperialismo. Isso significou um renovado ataque contra os trabalhadores,
elevando a precarização e a “uberização do trabalho” em escalas ainda mais
elevadas.
Porém, também houve a
retomada da luta de classes em nível internacional, com os levantes no Equador
e no Chile, e a importantíssima greve geral francesa. Estes combates dados pela
classe trabalhadora internacional demonstram uma vez mais que a luta de classes
deve ser encarada a partir da ótica do internacionalismo como um só campo de
combate, já que a vitória dos trabalhadores chilenos poderia abrir uma
correlação de forças muito mais favorável inclusive no Brasil. A
internacionalização da economia, por sua vez, é hoje algo inegável. Por isso
qualquer resposta estratégica hoje aos ataques da ultradireita neoliberal, mas
também daqueles que apesar de palavras progressistas sempre atuaram como freio
para a luta de classes, deve vir a partir do ponto de vista de que a batalha
por construir partidos revolucionários em cada país está indissoluvelmente
ligada à busca pela reconstrução do partido revolucionário internacional da
revolução. Algo sobre o qual o legado de Trótski foi o que melhor lançou luzes.
[1] Trotsky, Leon. Stalin’s Capitulation,
Writings of Leon Trotsky, 1936-37. Ed. por Naomi Allen e George Breitman. Nueva
York: Pathfinder Press, 1978. p. 254.
[2] “The Beginning of the End”. Ibid. p. 328-329.
[3] Albamonte, Emilio e Maiello,
Matías. Estrategia Socialista y Arte Militar. Buenos Aires: IPS, 2017 p.433
Fonte: http://esquerdadiario.com.br/Trotski-com-Marx-contra-Stalin-porque-o-marxismo-e-internacionalista
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