Por Ronilson de Sousa

Diferente do que aconteceu em outros países, a expansão de relações capitalistas de produção no Brasil não provocou embate entre classes sociais forte o suficiente para promover alterações profundas na estrutura fundiária, com distribuição de terras e o fim da concentração. Não aconteceu nem no seio da classe dominante, nem entre elas e as classes subalternas. A classe dominante transitou de uma economia agrário-exportadora para a economia urbano-industrial, mantendo a concentração da terra. 

A concentração de terras foi funcional ao processo de acumulação de capitais, na formação de um exército industrial de reserva, fornecendo matérias-primas e alimentos, e na redução do custo de reprodução da força de trabalho, não obstaculizando o processo de acumulação urbano-industrial. No campo, ainda, formou-se um proletariado rural, sem direitos, que viabilizou uma agricultura comercial de consumo interno e externo (1). 

A partir dos anos cinqüenta do século XX, aproximadamente, houve um processo maior de integração entre atividades agropecuária, industrial, serviços e com o capital interncional. Aconteceram mudanças técnicas na agropecuária, que ficaram conhecidas como “revolução verde”. Trata-se da consolidação das bases do processo de modernização conservadora, com a permanência da grande propriedade (um pacto agrário tecnicamente modernizante e socialmente conservador, que, simultaneamente, à integração técnica da indústria com a agricultura, trouxe ainda para o seu abrigo as oligarquias rurais ligadas à grande propriedade territorial). “Estes blocos de capital irão constituir mais adiante a chamada estratégia do agronegócio que vem crescentemente dominando a política agrícola do Estado” (2). O agronegócio deve ser compreendido como uma complexa articulação de capitais direta e indiretamente vinculados aos processos produtivos agropecuários, que se consolida no contexto neoliberal sob a hegemonia de grupos multinacionais (3). Essa articulação do capital monopolista na grande propriedade fundiária tem provocado mudanças estruturais, com a sua expansão sobre o campo brasileiro. 

Desse modo, na configuração atual da questão agrária no Brasil, há uma integração de capitais de vários setores e origem (nacional e internacional): aquisições, fusões e associações entre capitais (4); Além do controle de empresas estrangeiras sobre terras no Brasil (5). 

Há uma tendência de aumento da concentração de terras, na medida em que o agronegócio se expande, além da concentração de recursos. Nos últimos anos, o Estado vem promovendo uma intensa “flexibilização” das leis, principalmente ambientais e trabalhistas, para permitir a mais ampla liberdade de movimento para o capital, a exploração dos recursos naturais e da força de trabalho, sobretudo por meio do agronegócio e da mineração. 

Existe ainda uma tendência de maior controle do capital sobre a produção dos alimentos, destruindo a soberania e a segurança alimentar, sobretudo por meio da commoditização dos alimentos, da sua comercialização em bolsas de valores, dos transgênicos, dos agrocombustíveis, além do avanço dos agrotóxicos (6). 

Há uma articulação entre a utilização da terra produtiva e improdutivamente. O agronegócio está colocando para produzir terras, que antes, eram utilizadas como reserva de valor, de modo que tem contribuído para elevar o grau de utilização, o preço da terra, a especulação imobiliária, a especulação em torno do preço dos alimentos, a concentração fundiária. Nesse sentido, muitas terras ainda são utilizadas como reserva de valor, para especulação. Vale ressaltar que grandes bancos estão entre os maiores proprietários de terras. Grandes bancos também fazem parte da Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), a exemplo Banco Itaú BBA S/A, Banco Santander S/A, Banco Rabobank International Brasil S/A, Banco Cooperativo Sicredi, além do Banco do Brasil S/A (7) (8) (9). 

Tudo isso tem ocorrido mediante a diminuição e o combate aos assentamentos, a demarcação de terras indígenas e quilombolas; a entrega de títulos definitivos das terras destinadas à reforma agrária (10), com o objetivo de acelerar o processo de disponibilização destas no mercado de terras; os cortes no orçamento, a desestruturação de programas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (11) (12), o combate a produção orgânica; a retirada de direitos trabalhistas e a exploração da força de trabalho em condições análogas a da escravidão; a tendência de maior repressão e criminalização da luta e dos movimentos sociais. 

Nesse contexto, o campo brasileiro apresenta uma estrutura de classes, formada por grandes empresários, com integração de vários setores e origem de capitais; trabalhadores assalariados no agronegócio, permanentes e temporários; aqueles que possuem terra, ainda que, em muitos casos, precariamente; e aqueles que foram expropriados e retornam ao campo, por meio da luta pela terra. 

A expansão do agronegócio, a combinação de capitais no campo, a exploração capitalista do trabalho, não pode ser considerada tarefa democrática em atraso (que trava o desenvolvimento do capitalismo no Brasil) pois, não apenas faz parte da forma como o capitalismo se desenvolveu, como, também, se coloca diretamente num terreno socialista. No entanto, além dessa realidade, temos a utilização da terra para especulação, reserva de valor, a integração subalterna de agricultores familiares e camponeses ao capital, povos indígenas, quilombolas e camponeses, que reivindicam terras e recursos para produzir alimentos e garantir a reprodução do seu modo de vida. Todas essas questões estão articuladas, no entanto, essa última dimensão não coloca diretamente a contradição capital-trabalho e a socialização do trabalho, e, por isso, podem ser consideradas como tarefas e/ou reivindicações democráticas. Todavia, ela também se choca com o capital e a sua forma de se expandir no campo brasileiro, de modo que a questão agrária no Brasil constitui uma combinação de tarefa democrática e socialista, cuja solução se choca com a ordem capitalista em curso, seu estágio de acumulação, e, portanto, passa pela sua superação. 


REFERÊNCIA 

1 OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2011, 150p. 

2. DELGADO, Guilherme. A questão Agrária no Brasil, 1950-2003. Disponível em: <http://www.geomundo.com.br/Guilherme-C-Delgado-A-Questao-Agraria-no-Brasil.PDF>. Acesso em: 20 de Jan. de 2013.

3. CAMPOS, Christiane Senhorinha Soares Campos. A face feminina da pobreza em meio à riqueza do agronegócio. São Paulo: Expressão Popular, 2011, 200p. 

4. OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A questão da aquisição de terras por estrangeiros no Brasil - um retorno aos dossiês. Disponível em: <http://www.reformaagrariaemdados.org.br/sites/default/files/A%20questao%20de%20aquisicao%20de%20terras%20por%20estrangeiros%20no%20Brasil%20-%20um%20retorno%20aos%20dossi%C3%AAs%20-%20Ariovaldo%20Umbelino%20de%20Oliveira%20-%202010.pdf>. Acesso em: 20 de Out. de 2017. 

5. DATALUTA. Banco de Dados da Luta pela Terra. Relatório Brasil 2016. 2017. Disponível em: <http://www2.fct.unesp.br/nera/projetos/dataluta_brasil_2016.pdf>. Acesso em: 26 de Set. de 2019.  

6. LIMA, Lucas Gama. A dinâmica imperialista do contemporânea: Capital sem fronteiras e sua (ir)racionalidade apátrida. Tese de doutorado. Universidade Federal de Sergipe (UFS). São Cristóvão-SE, 2015, 303p. 

7. CAMPOS, Christiane Senhorinha Soares Campos. A face feminina da pobreza em meio à riqueza do agronegócio. São Paulo: Expressão Popular, 2011, 200p. 

8. OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Terras de estrangeiros e estrutura fundiária no Brasil. XVII Encontro Nacional de Geógrafos. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Campus da Pampulha, Belo Horizonte-MG, 23 de Julho de 2012. 

9. ABAG –Associação Brasileira do Agronegócio. Associados. Disponível em: <http://www.abag.com.br/institucional/associados>. Acesso em: 12 de março de 2020. 

10.  LEITE, Acácio Zuniga; CASTRO, Luís Felipe Perdigão; SAUER, Sérgio. A questão agrária no momento político brasileiro: liberalização e mercantilização da terra no estado mínimo de Temer. 2018. Disponível em: <https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/okara/issue/view/2129/showToc>. Acesso em: 30 de Set. de 2019.

11. MATTEI, Lauro. A política agrária e os retrocessos do governo temer. 2018. Disponível em: <https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/okara/issue/view/2129/showToc>. Acesso em: 30 de Set. de 2019.

12. CPT - Comissão Pastoral da Terra. Balanço da Questão Agrária no Brasil – 2018. 2019. Disponível em:<https://cptnacional.org.br/publicacoes-2/destaque/4588-balanco-da-questao-agraria-no-brasil-2018>. Acesso em: 30 de Set. de 2019.