Por Eduardo Vasco
Estátua de Kim Il
Sung, em Pyongyang, simbolizando a condução da revolução | Foto: Roman Harak
A teoria da Revolução Permanente foi esboçada pela
primeira vez por Karl Marx e retomada por Leon Trótski em 1905, sendo
desenvolvida posteriormente, a partir da década de 1920.
Essa teoria é uma resposta contundente à teoria do
“socialismo em um só país”, criada pela ala direita do Partido Bolchevique no
início da década de 1920 e depois elevada ao nível mais grotesco pela
burocracia stalinista. Conforme Trótski, na fase imperialista do
desenvolvimento da sociedade a burguesia nacional, mesmo nos países onde ela
não domina completamente a economia, a classe dominante não tem condições de
levar adiante uma luta revolucionária por reformas democráticas, ao contrário
do que ela fez no período anterior, liderando as massas pequeno-burguesas e
populares para derrubar o feudalismo. Tal revolução, que se pode delimitar no
período histórico que vai do século XVIII ao XIX, ocorreu na Europa Ocidental e
na América do Norte, enquanto que o resto do mundo, colonizado por essas
potências, foi impedido de se desenvolver de maneira acabada nesse mesmo
sentido.
Essa tarefa democrática, portanto, nos países
atrasados, em que não houve uma revolução burguesa ou esta não foi levada às
últimas consequências, só pode ser revolvida pela revolução dos trabalhadores
apoiados pelos camponeses. A Revolução Permanente, assim, significa uma
violenta transformação social, que passa pela etapa das reformas democráticas
da revolução burguesa mas não se detém nelas, evoluindo para uma revolução
socialista. Sempre – ao contrário do que foi proposto pelos stalinistas –
comandada pela classe operária em aliança com o campesinato, e nunca pela
burguesia.
Nas palavras de Trótski:
(…) a vitória da revolução democrática só é
concebível por meio da ditadura do proletariado apoiada em sua aliança com os
camponeses e destinada, em primeiro lugar, a resolver as tarefas da revolução
democrática. (A Revolução Permanente, p. 206)
A Revolução Russa de Outubro de 1917 foi a primeira
comprovação dessa teoria. Depois dela, vieram muitas outras. Um exemplo
clássico é a Revolução Cubana de 1959, que foi conduzida
por um movimento (o M-26) com aspirações nacional-democráticas, sem expropriar
a burguesia em um primeiro momento. Porém, diante das necessidades da revolução
e da pressão das massas, Fidel Castro rompeu totalmente com os setores
burgueses que o haviam apoiado e decretou, em 1961, o caráter socialista da
revolução.
No entanto, o outro lado do mundo já havia
fornecido novas comprovações da teoria da Revolução Permanente, com as
revoluções vietnamita, chinesa e
coreana.
Ainda em sua obra A Revolução Permanente,
escrita quase 20 anos antes dessas revoluções, Trótski afirmava:
Dada a acuidade do problema agrário e dado o
caráter odioso da opressão nacional, o proletariado dos países coloniais, a
despeito de sua juventude e do seu desenvolvimento relativamente fraco, pode
chegar ao poder, colocando-se no terreno da revolução nacional-democrática,
mais cedo do que o proletariado de um país avançado que se coloque num terreno
puramente socialista. (Idem, p. 180)
A Revolução
Coreana
Com uma civilização milenar, a Coreia sempre foi um
país que lutou, em toda a sua história, contra a dominação de forças
estrangeiras. Teve de enfrentar invasões mongóis, chinesas e japonesas até que,
no século XIX, no auge do capitalismo liberal que, do Ocidente, impunha seu
domínio ao Oriente, houve o início da mais dura invasão e posterior submissão do
povo coreano. De maneira semelhante ao que ocorreu com a China no mesmo
período, a Coreia foi vítima do acosso do imperialismo europeu, norte-americano
e japonês que, para abrirem o país ao capital imperialista, impuseram tratados
comerciais que subjugaram completamente a soberania da península. Advém daí o
processo de desenvolvimento capitalista que leva ao surgimento do proletariado
coreano, ainda pequeno no início do século XX mas que, diante das contradições
internas, viu-se impelido ao empreendimento revolucionário já na década de
1920.
A Revolução Coreana remonta à segunda metade do
século XIX, com o nascimento de um movimento nacionalista embrionário contra a
dominação imperialista. No entanto, a partir de 1905 e, de maneira acabada, a
partir de 1910, o Império Japonês impõe um domínio oficial à Coreia,
conquistando-a por completo como uma colônia. Esse domínio acentuou as
contradições do desenvolvimento capitalista coreano, combinado com uma extensa
estrutura agrária e o modo de produção asiático, levando a uma espoliação sem
precedentes do país e a uma enorme exploração do povo, fosse ele parte dos
trabalhadores assalariados, dos camponeses semi-escravizados ou mesmo de
setores burgueses e pequeno-burgueses cujas atividades eram prejudicadas e/ou
suprimidas pelo capital imperialista. Por exemplo, os japoneses monopolizaram a
indústria e dominaram por completo a propriedade fundiária, além de imporem uma
ditadura cultural, proibindo os coreanos de falarem o próprio idioma. Assim,
até algumas camadas da burguesia e pequena-burguesia nacionais viam-se
compelidas a lutar contra tais empecilhos para seu próprio desenvolvimento como
classe.
A primeira grande aparição da classe operária
ocorreu em 1º de março de 1919, quando fábricas foram ocupadas em um amplo
movimento grevista, seguindo-se ocupações de terras pelos camponeses. É
perceptível o impacto da I Guerra, com a derrota do imperialismo japonês
abrindo uma crise em seu império e, por outro lado, a Revolução Russa
influenciando a classe operária de diversos países (e a Coreia faz fronteira
com a Rússia) em um sentido revolucionário.
O Movimento Popular 1º de Março, como ficou
conhecido, teve importantes consequências. A principal delas foi inserir o
proletariado de uma vez por todas como protagonista na cena política, abrindo
caminho para um salto qualitativo do movimento nacional-democrático
revolucionário coreano.
Em 1925 é fundado o Partido Comunista da Coreia,
que durou somente três anos. Guiado pela política da III Internacional, já
controlada pelo stalinismo e cuja política errática havia imposto duras
derrotas aos operários britânicos e chineses, esse partido não se comportou à
altura da situação.
Surge, então, dentro do movimento revolucionário
coreano, o jovem Kim Il Sung, que lideraria nas sete décadas seguintes o
processo de estabelecimento da ditadura do proletariado na Coreia. Ao invés de
aderir à política do Partido Comunista da Coreia – um instrumento da burocracia
stalinista -, Kim Il Sung funda a União para Derrotar o Imperialismo (UDI), em 1926,
levando adiante uma política independente do Partido Comunista da III
Internacional.
Na cerimônia de fundação da UDI, Kim Il Sung fez um
discurso no qual afirmava que:
Pelo fato de a UDI assumir, de nome e de fato, a
missão de derrubar o imperialismo, seu programa deve estabelecer a tarefa
imediata de destruir o imperialismo japonês, inimigo jurado do povo coreano,
conquistar a libertação e independência da Coreia, e manter como tarefa futura
a construção do socialismo e do comunismo na Coreia, derrubar todas as formas
de imperialismo e construir o comunismo por todo o mundo. (Derrubemos o
Imperialismo, 17 de outubro de 1926)
Surge da própria situação colonial da Coreia e das
lutas contra os outros setores do movimento revolucionário (como os nacionalistas
e o PC) a ideia de independência das massas populares para fazer a revolução.
As massas precisam ter a independência de classe em relação ao nacionalismo
burguês, ao stalinismo e, obviamente, ao imperialismo. Mais adiante essa ideia
será desenvolvida e resultará na ideologia oficial do Estado Operário
norte-coreano, liderado por Kim Il Sung: a filosofia Juche. Trata-se de um
conceito que significa que é preciso apoiar-se nas próprias forças, sendo assim
um demarcador de terreno entre o movimento que lideraria a revolução e tomaria
o poder na Coreia do Norte e os outros setores como os nacionalistas e
stalinistas coreanos, bem como, a nível internacional, um ponto de apoio
ideológico da independência política do regime norte-coreano em relação à
burocracia soviética.
Em 1930, ocorre a Conferência de Kalun da Liga da
Juventude Comunista e da Liga da Juventude Anti-imperialista. Nessa
oportunidade, Kim Il Sung faz novas afirmações do caráter permanente da
revolução coreana:
(…) A tarefa principal da Revolução Coreana,
portanto, é derrubar os imperialistas japoneses e conquistar a independência da
Coreia e, ao mesmo tempo, liquidar as relações feudais e introduzir a
democracia. (…) Não vamos nos deter no meio do caminho ao concluirmos a
revolução democrática anti-imperialista e antifeudal, mas iremos transformá-la
em uma revolução para também construir a sociedade socialista e comunista e,
assim, levar a cabo a revolução mundial. Concluir a Revolução Coreana é um
grande serviço para acelerar a revolução mundial. (O caminho a ser seguido pela
Revolução Coreana, junho/julho de 1930)
Tal política ia de encontro aos ditames da III
Internacional de Stálin, que pregava a “revolução por etapas”, em que a
revolução democrática deveria ser apoiada pelo proletariado mas liderada pela
burguesia, para formar um regime burguês que realizasse as reformas
democráticas e, só depois, o proletariado poderia, finalmente, tomar o poder.
Forma-se, na esteira dessa conferência, um
movimento armado de libertação nacional, o Exército Revolucionário da Coreia,
que depois viria a se chamar Exército Guerrilheiro Popular Antijaponês e, mais
para frente, Exército Popular Revolucionário da Coreia. Enquanto o stalinismo,
a nível mundial, obrigava o movimento comunista que estava sob sua influência a
ficar à reboque da burguesia imperialista nas famigeradas Frentes Populares,
retirando assim a independência de classe do proletariado e adaptando-se à
democracia burguesa, na Coreia os revolucionários pegavam em armas para
derrotar o imperialismo e realizar a revolução. O que fez Kim Il Sung, como fez
depois Fidel Castro, foi conduzir o proletariado à liderança do processo
revolucionário, apoiando-se primeiramente nos camponeses e depois nos demais
setores oprimidos pelo imperialismo japonês, dentre eles camadas da pequena
burguesia e da burguesia nacional cujos interesses entravam em contradição com
os ocupantes. Mas nunca colocou o movimento operário à reboque desses setores.
Pelo contrário: fundada em 1936, a Associação para a Restauração da Pátria foi
uma frente única que teve como principal objetivo e resultado o recrutamento de
centenas de milhares de coreanos para as fileiras da revolução, sendo um
impulso para a luta armada, que nunca foi abandonada por Kim Il Sung,
contrapondo-se assim à política geral do stalinismo.
Sobre esse processo, Kim Jong Il (filho de Kim Il
Sung e seu sucessor na liderança da Coreia do Norte) refletiu da seguinte
maneira:
Devido ao fato de que no passado nosso país foi uma
sociedade atrasada, semifeudal e colonial, a classe operária não era numerosa,
mas sendo o contingente com mais forte aspiração pela independência e espírito
revolucionário, constituiu a medula das forças da revolução. Desde a etapa
democrática, anti-imperialista e antifeudal, o grande Líder [referindo-se a seu
pai] considerou os operários como integrantes da classe dirigente da revolução
e tomou suas demandas e as da nação como ponto de partida de todas suas
políticas e orientações. Em nosso país, todos os processos da revolução, desde
o da anti-imperialista de libertação nacional e o da democrática antifeudal,
até o da socialista e de sua construção, foram efetuados com êxito sob a
direção da classe operária. (Nosso socialismo centrado nas massas populares é
invencível, 5 de maio de 1991)
Assim, por meio desse processo revolucionário, que
combinava a luta armada nas montanhas com a organização da classe operária nas
cidades através de Comitês Populares, os comunistas liderados por Kim Il Sung
tomaram o poder na Coreia na esteira da derrota do Japão na II Guerra Mundial,
em 1945.
Aqui cabe uma importante observação. Como
explicado em artigo anterior, a onda revolucionária do
pós-guerra era algo pré-determinado pelo próprio desenvolvimento das
contradições do sistema imperialista. Tal como a I, a II Guerra desencadeou uma
nova crise revolucionária, que teve lugar especialmente nos países coloniais,
devido à brutal decadência do regime colonial imperialista. A propaganda
imperialista, para tentar deslegitimar o Estado Operário norte-coreano (mas
também a propaganda stalinista) sempre tentou dizer que a Revolução Coreana foi
vitoriosa por causa da presença do Exército Vermelho da URSS, que adentrou o
país nos momentos finais da derrota japonesa na guerra. Na verdade, quando isso
ocorreu, toda a Península Coreana era repleta de Comitês Populares, que
provocaram o estabelecimento de uma dualidade de poderes com as forças de
ocupação e, finalmente, saíram-se vencedores através da insurreição
revolucionária do povo coreano.
A independência foi vitoriosa com a revolução no
norte, de onde partiram os soldados do Exército Popular Revolucionário da
Coreia. No entanto, ela foi abortada no sul. A Conferência de Potsdam
estabeleceu que a União Soviética, ao intervir na Guerra do Pacífico para
ajudar os Estados Unidos a derrotarem o Japão, dividisse com os imperialistas
norte-americanos as atividades operacionais militares na Coreia (Ho, H. J.;
Hui, K. S.; Ho, P. T. Os imperialistas dos Estados Unidos iniciaram a
Guerra da Coreia, p. 39). Na prática, foi uma capitulação de Stálin, uma
vez que os EUA demonstravam claramente que pretendiam dominar a Coreia após
derrotarem o Japão, e os soviéticos conciliaram, permitindo a presença militar
dos norte-americanos na Coreia, o que abriu a porteira para a posterior
intervenção que ocorreu na Coreia do Sul, quando o general Douglas MacArthur
impôs seu fantoche Syngman Rhee e, junto com ele e os colaboradores dos
japoneses que foram perdoados, realizou uma brutal supressão dos Comitês
Populares, evitando a revolução no sul da Coreia e impondo uma ditadura
fascista sobre o seu povo.
Na Conferência de Ialta essa concordância com a
submissão da Coreia já havia sido indicada pela URSS, quando Franklin Roosevelt
afirmou que, “para que a Coreia se torne um país independente”, haveria que
existir um período de transição de 40 anos, o que foi ratificado pouco depois (Idem,
p. 67). Tudo isso sem uma política de enfrentamento por parte dos soviéticos,
que demonstraram logo em seguida que estavam realmente a fim de conciliar com o
imperialismo na Ásia. Se a URSS defendesse uma política revolucionária (como
alguns insistem em acreditar), ao ver as tropas dos EUA invadirem o sul da
Coreia para dizimarem a revolução, o Exército Vermelho deveria intervir para
apoiar a revolução e garantir a independência da Coreia.
Assim, enquanto a revolução era afogada em sangue
pelo imperialismo sem a intervenção soviética na Coreia do Sul, a Coreia do
Norte experimentava o início da sua revolução democrática-nacional. Isso já
vinha sendo realizado gradualmente em alguns territórios libertados pelo EPRC e
pelos Comitês Populares (como ocorrera também na Revolução Chinesa), mas com a
conquista da independência em toda a parte norte e a tomada do poder pelos
revolucionários comandados por Kim Il Sung, isso acarretou em um salto
gigantesco.
No capítulo “Os países atrasados e o programa de
reivindicações transitórias” do Programa de Transição da IV
Internacional, Trótski analisa que a revolução democrática nesses países tem
como tarefas centrais a revolução agrária e a independência nacional, que
resultariam diretamente nas questões da revolução socialista:
Éimpossível rejeitar-se simplesmente o programa
democrático: é imperativo que as próprias massas o superem na luta. A palavra
de ordem por uma assembleia nacional (ou constituinte) conserva toda a força em
países como a Índia ou a China. Essa palavra de ordem deve ser ligada
indissoluvelmente ao problema da emancipação nacional e reforma agrária. O
primeiro passo é armar os operários com esse programa democrático. Somente eles
podem mobilizar e unificar os camponeses. Sobre a base do programa democrático
revolucionário é preciso opor os operários à burguesia ‘nacional’. Assim, numa
determinada etapa da mobilização de massas sob as palavras de ordem da
democracia revolucionária, os sovietes podem e devem surgir. O papel histórico
deles, em cada período dado, em particular a relação deles com a assembleia
nacional, será determinado pelo nível político do proletariado, pela vinculação
entre este e a classe camponesa e pelo caráter da política do partido proletário.
Cedo ou tarde, os sovietes deverão derrubar a democracia burguesa. Somente eles
são capazes de conduzir a revolução democrática a uma conclusão, abrindo assim
uma era de revolução socialista. (Programa de Transição, pp. 62-63)
Trótski conclui que:
Aditadura do proletariado, que sobe ao poder como
força dirigente da revolução democrática, será colocada, inevitável e muito
rapidamente, diante de tarefas que a levarão a fazer incursões profundas no
direito burguês da propriedade. No curso do seu desenvolvimento, a revolução
democrática se transforma diretamente em revolução socialista, tornando-se,
pois, uma revolução permanente. (A Revolução Permanente, p. 208)
O programa democrático consiste em pontos como a
assembleia constituinte, a jornada de trabalho de oito horas, o confisco das
terras, a independência nacional diante do imperialismo e o direito do povo de
dispor de si mesmo (Idem, p. 201).
Os Comitês Populares eram o equivalente coreano dos
sovietes. Se, no sul, eles foram violentamente esmagados, no norte foram
fundamentais para o processo que se desenvolveu após a independência.
Consistiram na base para a posterior fundação, em fevereiro de 1946, do Comitê
Popular Provisório da Coreia do Norte, o governo revolucionário provisório.
Esse órgão foi o responsável pela promulgação, no mesmo ano, das leis de
reforma agrária (março), do trabalho (junho), de igualdade dos sexos (julho) e
da nacionalização das indústrias (agosto). Isto é, tarefas da revolução
burguesa executadas através da liderança da classe operária, já no poder do
Estado.
Em 10 de outubro de 1945 também é fundado, por Kim
Il Sung, o novo Partido Comunista, que criou suas organizações de massas como a
União Camponesa, a Liga Democrática da Juventude e a União Democrática das
Mulheres, além dos sindicatos operários. Também é fundada a Frente Única
Democrática Nacional com os outros partidos apoiadores da revolução. Essa
frente era “baseada na aliança operário-camponesa dirigida pela classe
operária, e abarcando as amplas massas do povo de todos os estratos da vida
social” (Ho, H. J.; Hui, K. S.; Ho, P. T. Os imperialistas dos Estados
Unidos iniciaram a Guerra da Coreia, p. 85). Em agosto do ano seguinte, o
Novo Partido Democrático (um dos que apoiaram a revolução) ingressa no Partido
Comunista, que é, então, renomeado para Partido do Trabalho da Coreia.
Conduzindo as reformas democráticas da revolução
nacional, o partido operário decide realizar o processo que desataria na
formação da Assembleia Constituinte. Primeiro, são efetuadas as eleições dos
comitês populares nos distritos, municípios e províncias em finais de 1946. A
partir disso, é realizado o Congresso dos Comitês Populares Distritais, Municipais
e Provinciais em fevereiro de 1947 na capital Pyongyang, do qual é conformado o
Comitê Popular Norte-Coreano. “Este comitê, que foi uma poderosa arma para a
edificação e revolução socialistas, esforçou-se para levar a cabo as tarefas do
período de transição ao socialismo e desenvolver a economia nacional de forma
planificada”, escrevem Ho Jong Ho, Kang Sok Hui e Pak Thae Ho (Idem, pp.
89-90).
No final de 1947 e início de 1948, o Partido do
Trabalho elabora a proposta de fundação da República Popular Democrática da
Coreia através de eleições democráticas a nível nacional. Ao mesmo tempo, o
regime fantoche da Coreia do Sul, que não cessava a dizimação dos Comitês
Populares e a supressão de todos os direitos democráticos, orientado pelo
imperialismo, buscava organizar eleições separadas, indo de encontro com as
aspirações do povo coreano pela reunificação.
Expressando a necessidade de concluir a revolução
nacional-democrática, Kim Il Sung declara:
Nós devemos estabelecer imediatamente um corpo
legislativo supremo em toda a Coreia, que represente a vontade de todo o povo
coreano, e organizemos a Constituição da República Popular Democrática da
Coreia. Não devemos estabelecê-la de uma forma separada, mas em um governo de
toda a Coreia que consista em representantes dos partidos políticos e
organizações sociais do sul e do norte da Coreia. (Idem, p. 94)
Um primeiro passo no sentido dessas eleições
constituintes foi a Conferência Conjunta dos Representantes das Organizações
Sociais e Partidos Políticos Sul e Norte Coreanos, realizada em Pyongyang em
abril de 1948, onde estavam representadas 56 entidades de todo o país. A
Conferência chamou todo o povo coreano a boicotar as eleições separadas e
antidemocráticas (uma vez que todas as organizações e partidos políticos
populares estavam sendo colocados na ilegalidade) convocadas por Syngman Rhee
no Sul.
Mesmo assim, o regime sul-coreano realizou eleições
abertamente fraudulentas, impondo a fundação da República da Coreia, no sul, em
15 de agosto. Isso obrigou os revolucionários a chamarem eleições gerais no
norte e no sul para fundar uma República Popular Democrática unificada, nas
quais participaram 99,97% dos eleitores norte-coreanos e 77,52% dos
sul-coreanos, apesar da forte repressão de Seul (Idem).
Essas eleições deram origem à Assembleia Popular
Suprema, a assembleia constituinte coreana, que promulgou uma constituição e
proclamou a fundação da República Popular Democrática da Coreia em 9 de
setembro de 1948. Contudo, apesar de dar uma legitimidade política nacional ao
regime nascido dos Comitês Populares, a República Popular Democrática não pôde
se consolidar em toda a Coreia, devido à divisão imposta pelo imperialismo.
A Guerra da
Coreia e a conciliação do stalinismo com o imperialismo (mais uma vez)
Diante das ameaças crescentes de invasão do norte
da Coreia pelas tropas de Syngman Rhee apoiadas pelos EUA, em 1949 a Frente
Democrática pela Reunificação da Pátria percebe que a revolução
nacional-democrática ainda está pendente e lança um conjunto de propostas para a
reunificação independente da Coreia. Essas propostas incluem a reunificação
feita pelos próprios coreanos, a expulsão do imperialismo, legalização dos
partidos e organizações políticas na Coreia do Sul e eleições gerais
simultâneas no norte e no sul que estabeleçam um órgão legislativo supremo que
promulgue uma constituição, formando assim um governo unificado de toda a
Coreia. A resposta do regime de Seul foi preparar, orientado pelo imperialismo,
a invasão do norte para destruir de uma vez por todas a revolução.
Assim, em 25 de junho de 1950, após diversas
incursões para o norte do Paralelo 38 (divisão formalizada pelo imperialismo em
1945 entre o norte e o sul da península), finalmente inicia-se a Guerra da
Coreia. O Exército Popular da Coreia, regularizado em 1946, contra-ataca e
consegue empurrar o exército sul-coreano de volta para o Paralelo 38 e mais
além. Caso a guerra fosse apenas entre as forças norte e sul-coreanas,
certamente o EPC venceria e libertaria toda a Península Coreana, realizando finalmente
a reunificação e a revolução nacional-democrática. Essa era justamente a
política do governo norte-coreano, diante da nova situação imposta.
Todavia, o imperialismo interveio militarmente. Os
planos de intervenção já vinham sendo elaborados anos antes e o aumento da
presença militar norte-americana no Japão e na Coreia do Sul, bem como a
própria participação dos EUA nas provocações do exército de Syngman Rhee,
sinalizavam que a guerra era iminente. No entanto, a URSS ainda mantinha uma
crença na conciliação com o imperialismo no Oriente. O próprio Stálin
preocupava-se que a Revolução Chinesa, vitoriosa no ano anterior, estalasse uma
revolução nos países vizinhos que desagradasse o imperialismo (Marie,
Jean-Jacques. Stalin, p. 842). Foi por isso que os soviéticos foram
pegos de calças curtas quando os EUA convocaram uma reunião de emergência do
Conselho de Segurança da ONU para aprovar o envio de uma força militar conjunta
a fim de apoiar a Coreia do Sul contra a “agressão” do norte.
E foi justamente o que ocorreu. Os EUA e mais 15
exércitos invadiram a Coreia para sufocarem a revolução, desta vez também no
norte. Dentre esses 15 exércitos estavam os da França, Bélgica e Grécia, países
onde, no final da II Guerra Mundial, a classe operária estava a ponto de tomar
o poder mas foi traída pelo stalinismo. A Guerra da
Coreia mostrou o tamanho do prejuízo resultante da política da burocracia
soviética para o proletariado internacional.
Como dito acima, não fosse a intervenção
imperialista o governo da Coreia do Norte teria levado a revolução para o sul e
libertado toda a nação. Esteve a ponto de fazer isso. Ainda nos primeiros meses
da guerra, o EPC chega a ocupar 90% da Coreia do Sul, onde viviam 92% dos
sul-coreanos, e por lá os revolucionários do norte restauram os Comitês
Populares, fundam células do Partido do Trabalho e realizam as reformas
democráticas que já haviam sido feitas na Coreia do Norte.
Porém, o desembarque das tropas imperialistas, em
setembro de 1950, desnivela completamente a guerra e faz recuar o EPC,
demolindo a estrutura revolucionária que havia sido retomada, desta vez de uma
maneira ainda mais sangrenta. O avanço das 17 tropas (Coreia do Sul, EUA e os
outros 15 países) chega ao Paralelo 38 e o ultrapassa, invadindo a Coreia do
Norte e ocupando quase todo o seu território, com exceção das montanhas mais ao
norte. Quando o imperialismo já dava mostras de tentar uma invasão da própria
China, o governo revolucionário que havia tomado o poder um ano antes em Pequim
decide organizar o Exército Voluntário do Povo Chinês, com um milhão de homens,
para apoiar os norte-coreanos e obrigar os imperialistas a voltarem novamente
para o Paralelo 38.
Por sua vez, a União Soviética pouco fez para
apoiar os revolucionários coreanos. A burocracia stalinista, além de governar o
maior país do mundo, fronteiriço com a Coreia e com um prestígio elevado pela
vitória na II Guerra Mundial, controlava os governos do leste europeu e os
partidos comunistas do Ocidente, muitos deles grandes partidos de massas.
Poderia ter feito muitas coisas, desde enviar o Exército Vermelho até organizar
brigadas internacionais como fizera na Espanha pouco mais de dez anos antes (que
já havia sido um empreendimento extremamente burocrático, conservador e
mesmo reacionário em termos de resultados). A URSS
já havia desenvolvido a bomba atômica em 1949 e poderia ter utilizado esse
poderio como forma de dissuasão logo quando o imperialismo já esboçava um
ataque contra a Coreia. Mas não o fez, nunca.
Assim, os norte-coreanos conseguiram obrigar o
imperialismo a assinar um cessar-fogo em 1953, retornando a divisão da
península a partir do Paralelo 38. Se tivessem sido ajudados pelos soviéticos,
a revolução poderia ter triunfado em toda a Coreia. Mas a burocracia
stalinista, há décadas, já apresentava uma total decadência contrarrevolucionária.
As críticas ao
stalinismo e o chamado pela união dos povos contra o imperialismo
Apesar das contradições do desenvolvimento da
revolução e do Estado Operário coreano, os norte-coreanos demonstraram inúmeras
vezes, ao longo da segunda metade do século XX, a vigência da teoria da
revolução permanente.
Enquanto a burocracia soviética aprofundava a
política fracassada do “socialismo em um só país” com a doutrina da
“coexistência pacífica” com o imperialismo e a continuidade do boicote à
revolução mundial, os norte-coreanos pregavam a luta aberta para abolir o
sistema imperialista, a começar pela dominação de seu próprio país pela
burguesia vassala.
Participaram da Conferência Tricontinental que, em
1966 em Havana, fundou a Organização de Solidariedade com os Povos da Ásia,
África e América Latina (OSPAAAL) com o objetivo de expandir a revolução para
todo o globo terrestre. Os países atrasados, cujos movimentos revolucionários
tinham uma maior independência em relação à burocracia soviética (ao contrário
da Europa) eram incentivados a pegar em armas para travar a luta pela
libertação nacional, a revolução democrática e o socialismo.
Em um artigo para a Revista Tricontinental,
Kim Il Sung expressa tal política totalmente oposta aos ditames de Moscou, afirmando:
Éum erro tratar de evitar a luta contra o
imperialismo alegando que, ainda que a independência e a revolução sejam boas,
mais preciosa é a paz. Por acaso não é um fato real que a linha de um
compromisso sem princípios com o imperialismo unicamente fomenta as manobras
agressivas deste e aumenta o perigo da guerra? Uma paz que leva à submissão
escravista não é paz. A paz verdadeira não pode ser conquistada se não lutarmos
contra aqueles que a perturbam e se não destruirmos a dominação dos opressores,
opondo-nos a essa paz escravista. Da mesma maneira que nos opomos à linha de
compromisso com o imperialismo, não podemos admitir o temor a lutar contra o
imperialismo com ações práticas, limitando-se unicamente a proclamar de modo
ruidoso que se está contra o imperialismo. Isto não é senão o contrário da
linha de compromisso. Tanto uma quanto a outra não tem nenhuma semelhança com a
verdadeira luta anti-imperialista e só servem de ajuda à política de agressão e
guerra do imperialismo. (Reforcemos a luta anti-imperialista e anti-ianque, 12
de agosto de 1967)
O líder norte-coreano escreve também, no mesmo
artigo:
Aluta anti-imperialista e anticolonialista dos
povos da Ásia, África e América Latina é uma sagrada luta de libertação de
centenas de milhões de seres humanos oprimidos e explorados e, ao mesmo tempo,
uma grande luta dirigida a cortar do imperialismo mundial essa linha de vida.
Esta luta constitui, junto com a luta revolucionária da classe operária pelo
socialismo, as duas grandes forças revolucionárias de nossa época, as quais se
uniram formando uma só corrente que sepulta o imperialismo. (Idem)
Ao longo dos anos 1950, 1960 e 1970, os
norte-coreanos buscaram colocar em prática esse pensamento, dando treinamento
militar e enviando tropas e armas para os revolucionários de diversos países
atrasados, dentre eles Angola, Moçambique e o próprio Brasil. Esse apoio foi
muito maior do que o da burocracia soviética, que não estava preocupada com a
revolução, mas sim em controlar os governos resultantes dessas revoluções para
que eles, ao invés de aprofundarem o processo revolucionário, servissem de
satélites para atender aos interesses políticos e econômicos da URSS.
Contrariando a teoria stalinista dos campos, os
norte-coreanos entenderam que a luta de classes a nível mundial não é
sintetizada na luta do “campo socialista” contra o “campo capitalista”, mas sim
na luta dos povos oprimidos contra o imperialismo.
A luta contra o imperialismo dentro da Coreia, até
hoje, também é travada seguindo esses mesmos princípios. Corretamente, as
reivindicações da Coreia do Norte pela reunificação com o Sul partem das
necessidades da revolução nacional-democrática, uma vez que, apesar de ter sido
estabelecida a ditadura do proletariado no Norte, o Sul continua sendo
controlado pelo imperialismo e uma ditadura contra a classe operária. Portanto,
ainda segue em vigor a luta pela libertação nacional que, por essência, tem um
caráter nacional-democrático na parte Sul.
Aprendendo com a própria experiência da revolução
nacional-democrática e da guerra anti-imperialista, os norte-coreanos tiveram
aquela conclusão eternizada nas palavras de Che Guevara: “¡no se puede confiar
en el imperialismo, pero ni tantito así, nada!” Por outro lado, décadas de luta
contra as tendências errôneas dentro de seu próprio país, desde a fundação da
UDI em contraposição ao partido comunista stalinista, passando pela revolução
de libertação nacional que contrariava a política da burocracia soviética de
conciliação com o imperialismo e chegando até a Guerra da Coreia na qual não
receberam o apoio necessário da URSS, os norte-coreanos aprenderam que era
preciso manter a independência política em relação à camarilha stalinista.
Chegaram a criticar abertamente a burocracia
soviética, ao denunciá-la por boicotar a revolução mundial, como nesta
declaração de Kim Jong Il:
Acausa socialista de um povo é nacional e, ao mesmo
tempo, internacional. O partido comunista ou o operário de cada nação tem o
direito de defender sua independência e, ao mesmo tempo, a obrigação de
respeitar a dos partidos de outros Estados, e de se unir e colaborar baseado na
camaradagem pela causa da vitória socialista. (Lições históricas da construção
do socialismo e a linha geral do nosso Partido, 3 de janeiro de 1992)
Ainda nesse discurso, Kim Jong Il faz uma crítica
contundente ao aparelhamento dos partidos comunistas do leste europeu pela
burocracia stalinista:
Já há muito tempo que existira um centro no
movimento comunista internacional, e o partido de cada país atuava como sua
sucursal. O natural teria sido que os partidos dos países socialistas
cooperassem sobre a base de completa igualdade e independência, mas alguns, por
não terem se desprendido dos costumes contraídos em meio às suas velhas
relações, no tempo da Internacional Comunista, causaram grandes danos ao avanço
do movimento comunista internacional. Um, autodenominando-se como ‘centro’,
havia perpetrado descaradamente atos de transmitir ordens a outros e pressionar
e intervir nos assuntos internos dos que não seguiam sua equivocada linha. (Idem)
Certamente, o fato de ter sido realizada de maneira
independente do stalinismo e de ter mantido essa independência é uma das causas
da permanência do Estado Operário norte-coreano, mesmo após a queda da URSS e
dos regimes do leste europeu e a restauração capitalista na Ásia. Talvez o
maior mérito de Kim Il Sung, que faleceu em 1994, tenha sido levar a revolução
adiante no exato momento em que ela era boicotada pela burocracia stalinista a
nível mundial.
Ao contrário do que podem pensar os stalinistas de
boteco, a Coreia do Norte não é uma prova da teoria do “socialismo em um só
país”, mas sim da necessidade da revolução permanente. O socialismo, como forma
superior de organização da sociedade e como sistema político e econômico, só
pode ser plenamente alcançado quando o sistema imperialista tiver sido
superado. Em um mundo controlado pelo imperialismo, onde todas as relações
sociais são dominadas ou ao menos influenciadas por esse regime, não é possível
alcançar uma independência completa, como demonstra o próprio exemplo
norte-coreano. O isolamento pós-URSS com o cruel bloqueio econômico imperialista
produziu mais de uma década de fome para milhões de coreanos e mesmo hoje,
quando essa situação está melhor controlada, o país ainda sofre com inúmeras
dificuldades causadas pelas sanções econômicas e constantes ameaças militares.
Além disso, o domínio semicolonial do imperialismo
sobre a Coreia do Sul freou a revolução nacional-democrática do povo coreano.
Ela só irá se concluir com a libertação do Sul da Coreia e a reunificação de
toda a península de maneira independente do imperialismo.
0 Comentários
Postar um comentário