Por Ronilson de Sousa 

Ao contrário das expectativas de algumas formulações estratégicas, os processos de desenvolvimento do capitalismo não aconteceram da mesma forma que ocorreram nos chamados países centrais, de via clássica, a exemplo da Inglaterra. No que se refere à questão agrária, Lenin já havia identificado caminhos diferenciados de desenvolvimento do capitalismo, baseados na pequena e na grande propriedade. Podemos destacar algumas vias, como a via clássica, a via americana, a via prussiana, além da via das plantations e a via das fazendas. Vamos analisar algumas delas.

No caso da Inglaterra, analisado por Marx, aconteceu conflito entre os proprietários fundiários e a burguesia industrial. Enquanto os proprietários fundiários - na obsessão pelo monopólio da propriedade fundiária e nos ganhos com a cobrança de renda da terra – se organizaram para impedir a importação de cereais por meio das leis dos cereais; os capitalistas, buscando aumentar os seus lucros a partir da diminuição do custo de reprodução da força de trabalho, gerada pela queda do preço dos alimentos, organizaram-se para suprimir todas as restrições à importação de cereais. O resultado desse conflito foi o triunfo da burguesia industrial sobre os proprietários fundiários.

No caso dos EUA, conforme analise do Mazzeo, haviam duas formas de ocupação do território. Uma, ao norte, com ocupação de povoamento, sobretudo por parte de camponeses fugitivos de guerras religiosas e da miséria, e outra, ao sul, com a ocupação baseada no latifúndio escravista e produção para o mercado externo. Ao norte desenvolveu-se uma economia com manufaturas e atividades comerciais, que determinaram o surgimento de uma burguesia, que assumiu uma posição revolucionária pela independência em relação à Inglaterra, em 1776, e, depois, sobre a estrutura escravista do sul, na Guerra Civil de 1861-1865, destroçando o latifúndio escravista que entravavam o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas. Isso garantiu um processo de distribuição de terras.

Nesses casos, o desenvolvimento do capitalismo, gerou conflito entre a burguesia e os proprietários fundiários, resultando na vitória da burguesia e na adoção de uma política de distribuição de terras.

Um processo de desenvolvimento do capitalismo, que aconteceu de modo diferenciado, foi o caso da Alemanha, onde a expansão de relações capitalistas de produção aconteceram tardiamente. Era um aglomerado de feudos e só passou a ter unidade econômica e política no decorrer do século XIX, com uma unificação nacional. O desenvolvimento do capitalismo ocorreu por meio de agentes do feudalismo, que transitaram para o capitalismo sem alterar a estrutura de poder; o capitalismo se expandiu a partir da grande propriedade fundiária e sem alterar essa estrutura, mas produzindo para o mercado.

Já no caso da Rússia, tratava-se de um país predominantemente agrário, cuja as principais características eram a formação de uma população de cerca de 150 milhões de habitantes, onde aproximadamente 80% encontrava-se no campo. Portanto, conforme Trotsky, a indústria ocupava um lugar mínimo, em relação ao campo, e isso significava, no conjunto, uma baixa produtividade do trabalho.

Trotsky avaliava, desde 1905, o processo revolucionário, na Rússia, da seguinte maneira: em relação com as suas tarefas imediatas, a revolução é burguesa. Contudo, a burguesia russa é contrarevolucionária. Por conseguinte, a vitória da revolução só é possível com a vitória do proletariado. O proletariado vitorioso não se deterá no programa da democracia burguesa e passará imediatamente ao programa do socialismo. A revolução russa será a primeira etapa da revolução socialista mundial.

Trotsky considerava que, “no outono de 1917, quase todo o país era um vasto campo de levantes camponeses. De 621 distritos da velha Rússia, 482, isto é, 77% estavam conflagrados pelo movimento. A luz do incêndio iluminava a sublevação nas cidades. Porém - podereis objetar - a guerra camponesa contra os latifundiários é um dos elementos clássicos da revolução burguesa, e não da revolução proletária. Eu respondo: completamente justo. Assim aconteceu no passado. Mas, agora, a impotência do capitalismo para viver num país atrasado revela-se no fato de que a sublevação camponesa não empurrou para a frente a burguesia, na Rússia, senão, pelo contrário, colocou-a no campo da reação. Ao campesinato, para não fracassar, não lhe restava outro caminho senão a aliança com o proletariado industrial. Esta ligação revolucionária com as classes oprimidas, Lênin previu, genialmente, e preparou, há muito tempo. Se a burguesia pudesse resolver, francamente, a questão agrária, com toda a segurança, o proletariado não poderia conquistar o poder em 1917. Chegando demasiadamente tarde. Mergulhada precocemente na decrepitude, a burguesia russa, egoísta e covarde, não teve a ousadia de levantar a mão contra a propriedade feudal. E, assim, deixou o poder ao proletariado e, ao mesmo tempo, o direito de dispor da sorte da sociedade burguesa. Para que o Estado Soviético fosse realidade era, sobretudo, necessária a ação combinada destes fatores de natureza histórica distinta: a guerra camponesa, isto é, um movimento que é característico da aurora do movimento burguês, e a sublevação proletária, que anuncia o crepúsculo do capitalismo. Aí reside o caráter combinado da revolução russa. Bastava que o urso camponês se levantasse sobre as patas traseiras para mostrar o terrível de sua fúria. Mas urso camponês carecia de capacidade para dar à sua revolta uma expressão consciente: tem sempre a necessidade de um guia. Pela primeira vez na história do movimento social o campesinato sublevado encontrou um dirigente leal: o proletariado. Quatro milhões de operários da indústria e dos transportes lideraram cem milhões de camponeses. Tal foi a relação entre o proletariado e a classe camponesa na revolução”.

Antes da revolução de outubro de 1917 (e mesmo antes da revolução de 1905), Lenin, que conhecia os processos anteriores, avaliava que o desenvolvimento do capitalismo era progressista, em relação ao antigo regime feudal, por motivos que poderiam ser sintetizados em dois aspectos: “aumento das forças produtivas do trabalho social e socialização deste”. Todavia, é importante ressaltar que, para o dirigente revolucionário, o caráter progressista da expansão do capitalismo era compatível com as suas contradições e os seus aspectos negativos, pois ocorre em meio a uma série de desigualdades e desproporções: aos períodos de prosperidade sucedem os de crise, o desenvolvimento de um ramo industrial provoca o declínio de outro, etc.

Para Lenin, a revolução colocava uma dualidade do campesinato, do ponto de vista da sua situação e do ponto de vista do seu papel: de um lado, os imensos remanescentes da economia baseada na corveia e os resíduos da servidão diante da pauperização e da ruína dos camponeses pobres explicam as raízes do movimento revolucionário camponês. De outro, a contraditória estrutura interna dessa classe, seu caráter pequeno-burguês, o antagonismo interno entre as tendências proprietárias e proletárias.

Lenin compreendia que, com essa base econômica, o caráter da revolução na Rússia era uma revolução burguesa, e duas eram as vias fundamentais possíveis para o desenvolvimento do capitalismo e seu desfecho. Ou a antiga propriedade fundiária privada, na qual predomina a servidão, se transforma lentamente em estabelecimento puramente capitalista, do tipo junker, nesse caso, a estrutura agrária do Estado se torna capitalista, conservando por muito tempo traços feudais. Ou o antigo latifúndio é destruído pela revolução, que liquida todos os vestígios de servidão. No primeiro caso, conserva-se a grande propriedade fundiária e as bases da antiga superestrutura. No segundo caso, a grande propriedade fundiária e todos os principais pilares da antiga superestrutura são destruídos. Na primeira via, o papel dirigente cabe ao burguês e ao latifúndio, com o apoio dos camponeses ricos, e o restante da massa camponesa verá deteriorada a sua situação, expropriada e explorada em enorme escala. Na segunda via, o papel dirigente é desempenhado pelo proletariado e pela massa camponesa, neutralizando a burguesia vacilante ou contrarrevolucionária; assegurando “o desenvolvimento mais rápido e livre das forças produtivas sobre uma base capitalista com a situação das massas operárias e camponesas sendo a melhor possível no limite do regime de produção mercantil”. E tudo isso cria as condições favoráveis para que a classe operária possa realizar a transformação socialista. Lenin e os Bolcheviques optaram por essa segunda via.

No entanto, é importante ressaltar que Lenin alterou a posição, em abril de 1917 (a partir dos escritos conhecidos como as “Teses de Abril”), logo após a derrubada do czar e a formação do governo provisório capitalista. Lenin vai desenvolver melhor as ideias expressas nas “Teses de Abril” em outros textos (desse mesmo mês e ano), principalmente em “Sobre a Dualidade de Poderes” e “As Tarefas do Proletariado na Nossa Revolução (Projeto de Plataforma do Partido Proletário)”. Nesse último ele defende que: “O poder de Estado passou, na Rússia, para as mãos de uma nova classe, a saber: da burguesia e dos latifundiários aburguesados. Nesta medida a revolução democrático-burguesa na Rússia está terminada.” No texto “sobre a dualidade de poderes”, Lenin defende: “Uma particularidade extremamente notável da nossa revolução consiste em que ela gerou uma dualidade de poderes. É preciso, antes de mais nada, compreender este fato; sem isso será impossível ir adiante. É necessário saber completar e corrigir as velhas fórmulas, por exemplo, as do bolchevismo, porque, como se demonstrou, foram acertadas em geral, mas a sua realização concreta revelou-se diferente. Ninguém antes pensava nem podia pensar na dualidade de poderes.”

Para ele (Lenin), a dualidade de poderes não exprime senão um momento de transição no desenvolvimento da revolução, quando ela já foi além dos limites da revolução democrático-burguesa comum, mas não chegou ainda a uma ditadura pura do proletariado e do campesinato. Nos textos desse período, abril de 1917, Lenin defende ruptura completa com todos os interesses do capital, principalmente como a única via para acabar com a guerra imperialista. Porém, Lenin defende a não introdução imediata do socialismo, mas somente passar a produção social ao controle dos soviets, a formação de um Estado Comuna, a fundação da III Internacional, dentre outras medidas.

Lenin colocava a necessidade de socialização do trabalho também no campo. Mesmo após a revolução, falando sobre a necessidade de superação das classes, Lenin analisa que subsistia ainda a divisão em operários e camponeses. Se um camponês instalado numa parcela de terra, apropriar-se do trigo excedente, isto é, do trigo que não precisa, nem ele nem o seu gado, enquanto os demais carecem de pão, converte-se num explorador. Quanto mais trigo retém, mais ganha, e não lhe importa que os outros passem fome: ‘Quanto mais fome tiverem, mais caro venderei o meu trigo’. É preciso que todos trabalhem de acordo com um plano comum numa terra comum, em fábricas comuns e de acordo com regras comuns. Por conseguinte, a tarefa da luta do proletariado não terminou com o derrubamento do tsar e a expulsão dos proprietários de terras e capitalistas; levá-la ao termo é, precisamente, a missão do regime que denominamos ditadura do proletariado. A luta de classes continua, somente mudaram as suas formas. É a luta de classe do proletariado para impedir o regresso dos antigos exploradores, para agrupar numa estreita união a massa dispersa do campesinato ignorante. A luta de classes continua, e a nossa missão é subordinar todos os interesses a esta luta. E para evitar que se restaure o poder dos capitalistas e da burguesia, é preciso proibir o mercantilismo, é preciso impedir que uns indivíduos se enriqueçam à custa dos outros, é preciso que os trabalhadores se unam estreitamente ao proletariado e constituam a sociedade comunista. A sociedade comunista significa que tudo é comum: a terra, as fábricas, o trabalho. Isso é o comunismo.

No caso do Brasil, não houve embate entre classes sociais - seja no seio da classe dominante, sobretudo entre grandes proprietários fundiários e a burguesia industrial, como na Inglaterra, nem a exemplo dos EUA; nem entre as classes dominantes e as classes subalternas, a exemplo da Rússia - capaz de forçar uma alteração na estrutura fundiária, com o fim do latifúndio e a distribuição de terras. Nesse sentido, o processo foi mais próximo ao caso Alemão, na perspectiva da permanência e modernização dos proprietários fundiários e das antigas classes dominantes.

No Brasil não houve feudalismo. A concentração de terras fez parte da forma como o capitalismo se expandiu, não constituindo entrave ou obstáculo atrasado ao processo de acumulação do capital. A luta pela terra não se choca com o latifúndio feudal ou pré-capitalista, mas, choca-se justamente com a ordem capitalista em curso, choca-se com o monopólio capitalista e com o Estado burguês. Há uma articulação de capitais no campo, com a consolidação da aliança entre o capital monopolista e a grande propriedade fundiária, conhecido como agronegócio. O capital explora a força de trabalho por meio da subsunção real e formal. Há uma combinação entre relações capitalistas e não capitalistas no campo. A questão agrária não constitui uma tarefa democrática em atraso, que precisa ser realizada como uma etapa ou pré-condição para uma revolução socialista. Há, também, a contradição capital x trabalho, com a formação de um proletariado no campo. A luta pela solução da questão agrária, ao chocar-se com o capitalismo, passa pela sua superação.

Referências

LENIN, Vladimir Ilich Ulianov. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia.

______. Sobre a dualidade de poderes.

______. As Tarefas do Proletariado na Nossa Revolução (Projecto de Plataforma do Partido Proletário).

MARX, Karl. O capital.

MAZZEO, Antonio Carlos. Burguesia e Capitalismo no Brasil.

TROTSKY, Leon. O que foi a Revolução de Outubro.