Por Ronilson de Sousa

Um dos equívocos centrais da Estratégia Democrático-Popular do Partido dos Trabalhadores (PT) é a concepção de Estado e seu caráter de classe. Acredita que a composição pessoal, pela origem de classe dos funcionários, a ocupação de cargos, a chegada ao governo, a partir das eleições, alteram a natureza ou caráter de classe do Estado burguês.

Marx e Engels (2010) já haviam afirmado que “o executivo no Estado moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa.” (p. 42). Lenin (2010), preocupado com as deformações do pensamento marxista, recupera a concepção de Marx e Engels sobre o Estado. Ele (o Estado) é, dessa forma, apresentado como produto e manifestação do antagonismo inconciliável das classes. “O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classes são inconciliáveis.” (LENIN, 2010, p. 27).

De acordo com Lenin, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de submissão de uma classe por outra; é a criação de uma “ordem” que legalize e consolide a submissão, amortecendo a colisão das classes. Nesse sentido, a libertação da classe oprimida só é possível por meio de uma revolução e da supressão do aparelho governamental criado pela classe dominante. O sufrágio universal é visto apenas como um instrumento de dominação da burguesia, e não como esperavam os socialistas-revolucionários, mencheviques, social-chauvinistas e oportunistas da Europa ocidental, que partilham a falsa concepção de que o sufrágio universal, “no Estado atual”, é capaz de manifestar verdadeiramente e impor a vontade da maioria dos trabalhadores (LENIN, 2010). Para Lenin, a classe oprimida se empenha em criar uma nova organização do mesmo gênero, para pô-la ao serviço, não mais dos exploradores, mas dos explorados. O Estado burguês é substituído pelo Estado proletário por meio de uma revolução. Somente a revolução pode abolir o Estado burguês. (LENIN, 2010).

Lenin analisa que o Estado burguês é uma força especial de repressão do proletariado pela burguesia, de milhões de trabalhadores por um punhado de ricos, deve ser substituída por uma força especial de repressão da burguesia pelo proletariado (a ditadura do proletariado). O primeiro ato pelo qual o Estado (proletário) se manifesta como representante de toda a sociedade – a posse dos meios de produção em nome da sociedade – é, ao mesmo tempo, o último ato próprio do Estado. A intervenção do Estado nas relações sociais vai tornando supérflua daí por diante e desaparece automaticamente. O governo das pessoas é substituído pela administração das coisas e pela direção do processo de produção. O Estado não é “abolido”: morre. Nisso consiste a abolição do Estado como Estado. É nisso que consiste o ato de posse dos meios de produção em nome de toda a sociedade. O definhamento e a morte do Estado se referem aos vestígios do Estado proletário que subsistem depois da revolução socialista. (LENIN, 2010).

Mauro Iasi explica que o Estado tem forma e conteúdo. O conteúdo ou o seu caráter de classe é definido pelo fato de ser sempre o Estado da classe economicamente dominante, isto é, da classe que expressa em cada momento, as relações sociais de produção dominantes e que, na luta de classes, atua para manter estas relações e garantir a sua reprodução. Na sociedade capitalista, as relações sociais que constituem o capital, baseiam-se na propriedade privada dos meios de produção, na extração de mais valor e na acumulação privada da riqueza produzida (IASI, 2010).

“A manutenção e reprodução das relações capitalistas exigem do Estado, através de toda uma ordem institucional governamental, legislativa, repressiva, jurídica e ideológica, sinteticamente três direitos: o direito de propriedade privada dos meios de produção, o direito de comprar e vender livremente a força de trabalho humana como mercadoria e o direito de acumular privadamente a riqueza socialmente produzida” (IASI, 2010, p. 32).

Já no caso da forma do Estado, ela é dada de acordo com a dinâmica histórica da luta de classes. O Estado pode assumir diferentes formas: monarquia, república, ditadura militar, etc. Todavia, apesar dessas alterações na forma, o Estado segue sendo o Estado burguês, para garantir a reprodução das relações capitalistas de produção.

 

“Naquilo que nos interessa, o caráter burguês de um Estado não se altera pelo maior ou menor grau de participação das demais classes na composição das casas representativas ou na composição do próprio governo. Uma vez que se mantenha o caráter privado da propriedade dos meios de produção, a livre compra da força de trabalho e a acumulação privada da riqueza socialmente produzida, o Estado pode assumir a forma que quiser: um Emirado Árabe, uma Monarquia dirigida por uma senhora com chapéus ridículos e filhos horrendos, uma Ditadura Militar ou um Estado Democrático de Direito, desde que entre estes direitos se garanta a propriedade, as relações assalariadas e a acumulação privada. Isto evidentemente serve também para a pretensão dos chamados “Estados Populares”. A mudança de nome não tem poder de alterar a substância do Estado como acreditavam os nominalistas e parecem acreditar os modernos reformistas.” (IASI, 2010, p. 32-33). 

 

De acordo com Iasi (2010), a mudança socialista exige, para que se comece a transição, a socialização dos meios de produção e a superação da forma mercadoria da força de trabalho, de maneira que a ninguém seja permitido apropriar-se privadamente dos meios necessários à produção coletiva da vida, o que leva à transformação da acumulação privada em acumulação social.

 

“Se a transição socialista começa por estas iniciativas descritas, principalmente pela socialização dos meios de produção, seria possível utilizar o Estado burguês para conduzir a transição socialista? Parece-nos que não, pois o Estado burguês existe exatamente para evitar isto, garantir a ordem do capital e, portanto, que a propriedade não seja coletivizada, que a força de trabalho possa se vender livremente e que a riqueza acumulada privadamente seja garantida nas mãos de seus proprietários” (IASI, 2010, p. 33).

 

No caso do Partido dos Trabalhadores (PT) - que acreditou que a chegada à presidência da república, por meio do processo eleitoral, poderia alterar o caráter de classe do Estado burguês, isto é, que poderia utilizar o Estado atual para desenvolver uma política na perspectiva da classe trabalhadora – chegou à presidência da república e garantiu o desenvolvimento de políticas que viabilizaram a reprodução e acumulação de capitais e, depois, em meio ao aprofundamento da crise do capital, sofreram um golpe articulado com as instituições e os mecanismos próprios da institucionalidade do Estado burguês.

 

REFERÊNCIAS


IASI, Mauro Luis. A atualidade da Revolução Soviética e a questão do Estado. In: PINHEIRO, Milton (org). Outubro e as experiências socialistas do século XX. Bahia: Quarteto, 2010. p. 17-58.

 

LENIN, V. I. O Estado e a Revolução: o que ensina o marxismo sobre o Estado e o papel do proletariado na revolução. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010, 182p.


MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2013, 271p.