Por Ronilson de Sousa 

Florestan Fernandes (1987) chama atenção para que a realidade brasileira, especialmente no que se refere à burguesia e a revolução burguesa, não seja pensada de acordo com esquemas de outras realidades. No caso do surgimento da burguesia no Brasil, ele afirma que não deve ser analisado por meio de transposição mecânica de conceitos, mas nos requisitos estruturais e funcionais do padrão de civilização. Esse padrão de civilização, “pelo menos depois da Independência, envolve ideais bem definidos de assimilação e de aperfeiçoamento interno constante das formas econômicas, sociais e políticas de organização da vida, imperantes no chamado ‘mundo ocidental moderno’” (FERNANDES, 1987, p. 17). Não se entende o surgimento da burguesia no Brasil transpondo mecanicamente conceitos, porque, assim como não tivemos um “feudalismo”, também não tivemos o “burgo” característico do mundo medieval. Conforme Florestan (1987), mais que uma classe social, propriamente dita, trata-se de uma congérie (um aglomerado de setores diferentes), que assumiram o padrão burguês de civilização.

De acordo com Florestan Fernandes (1987), o que unia os vários setores dessa congérie não eram os interesses fundados em situações comuns de classe (1), mas a maneira pela qual tendiam a polarizar socialmente certas utopias. Para o autor, esse fato pode ser evidenciado na reação às ocorrências de uma sociedade na qual imperava a violência como técnica de controle do escravo; na reação aos mores em que se fundavam a escravidão, a dominação senhorial e o próprio regime patrimonialista; à emergência, à propagação e à intensificação de movimentos inconformistas, em que o antiescravismo disfarçava e exprimia o afã de expandir a ordem social competitiva.

 

Foi nas cidades de alguma densidade e nas quais os círculos “burgueses” possuíam alguma vitalidade que surgiram as primeiras tentativas de desaprovação ostensiva e sistemática das “desumanidade” dos senhores ou de seus prepostos. Também foi aí que a desaprovação à violência se converteu primeiro em defesa da condição humana do escravo ou do liberto e, mais tarde, em repúdio aberto à escravidão e às suas consequências, o que conduziu ao ataque simultâneo dos fundamentos jurídicos e das bases morais da ordem escravista. Por fim, desses núcleos é que partiu o impulso que transformaria o antiescravismo e o abolicionismo numa revolução social dos “brancos” e para os “brancos”: combatia-se, assim, não a escravidão em si mesma, porém o que ela representava como anomalia, numa sociedade que extinguira o estatuto colonial, pretendia organizar-se como Nação e procurava, por todos os meios, expandir internamente a economia de mercado (FERNANDES, 1987, p. 19).

Nesse sentido, sobre o tema da revolução burguesa no Brasil, Florestan Fernandes (1987) ressalta que, ao contrário de ser pensada de acordo esquemas repetitivos da história de outros povos, em particular da Europa moderna, deve ser analisado como se processou a absorção de um padrão estrutural e dinâmico de organização da economia, da sociedade e da cultura. 

Segundo Fernandes (1987), o contexto sócio-econômico em que se projetava a grande lavoura no sistema colonial anulou, progressivamente, o ímpeto, a direção e a intensidade dos móveis capitalistas (introduzidos no Brasil desde esse período). Isolado em sua unidade produtiva, tolhido pela falta de alternativas históricas e, em particular, pela inexistência de incentivos procedentes do crescimento acumulativo das empresas, o senhor de engenho acabou submergindo numa concepção da vida, do mundo e da economia que respondia exclusivamente aos determinantes tradicionalistas da dominação patrimonialista. Com a extinção do estatuto colonial e a constituição de um Estado nacional, controlado pela aristocracia agrária, mudaram o caráter das relações econômicas, de tal modo que a primeira esfera na qual ocorre a reelaboração dos móveis capitalistas de ação econômica prende-se à grande lavoura. Ou seja:

 

potencialidades capitalistas da grande lavoura foram canalizadas para o crescimento econômico interno, permitindo o esforço concentrado da fundação de um Estado nacional, a intensificação concomitante do desenvolvimento urbano e a expansão de novas formas de atividade econômicas, que os dois processos exigiam. (FERNANDES, 1987, p. 27). 

É importante ressaltar, segundo Florestan (1987), que os agentes humanos que impulsionaram essas mudanças foram frações de “fazendeiros de café” e de “imigrante”. Principalmente, a fração dos senhores rurais aburguesou-se, desempenhando uma função análoga à de certos segmentos da nobreza europeia na expansão do capitalismo. Aqui, não tivemos uma burguesia distinta e em conflito de vida e morte com a aristocracia agrária. 

Além disso, de acordo com Fernandes (1987), trata-se de uma burguesia com um moderado espírito modernizador e que tendia a circunscrever a modernização ao âmbito empresarial e às condições imediatas da atividade econômica ou do crescimento econômico. Saia disso apenas como um meio, não como um fim, para demonstrar a sua civilidade. Nunca para empolgar os destinos da Nação como um todo, para revolucioná-la de alto a baixo.

 

Ao concretizar-se, a revolução burguesa transcende seu modelo histórico – não só porque está superado. Mas, ainda, porque os países capitalistas retardatários possuem certas particularidades e se defrontam com um novo tipo de capitalismo no plano mundial. A burguesia nunca é sempre a mesma através da história. No caso brasileiro, a burguesia se moldou sob o tipo de capitalismo competitico, que nasceu confluência da economia de exportação (de origens coloniais e neocoloniais) com a expansão do mercado interno e da produção industrial para esse mercado (realidades posteriores à emancipação política e condicionantes de nossa devastadora “revolução urbano-comercial”). No entanto, a burguesia atinge sua maturidade e, ao mesmo tempo, sua plenitude de poder, sob a irrupção do capitalismo monopolista, mantidas e agravadas as demais condições, que tornaram a sociedade brasileira potencialmente explosiva, com o recrudescimento inevitável da dominação externa, da desigualdade social e do subdesenvolvimento. Em conseqüência, o caráter autocrático e opressivo da dominação burguesa apurou-se e intensificou-se (processo que, sem dúvida, continuará, mesmo que encontre formas eficientes de dissimulação, como sucedeu com a dominação senhorial no Império). Não só porque ainda não existe outra força social, politicamente organizada, capaz de limitá-la ou detê-la. Mas, também, porque ela não tem como conciliar o modelo neo-imperialista de desenvolvimento capitalista, que se impôs de fora para dentro, com os velhos ideais de Revolução Burguesa nacional-democrática. (FERNANDES, 1987, p. 220). 

Para Fernandes (1987), a forma de dominação burguesa no Brasil articula três funções centrais: 1) visa, acima de tudo, preservar e fortalecer as condições econômicas, socioculturais e políticas através das quais ela pode manter-se; 2) visa ampliar a incorporação estrutural e dinâmica da economia brasileira no mercado mundial, com o objetivo de garantir os processos de modernização tecnológica, acumulação capitalista, desenvolvimento econômico e assegurar ao poder burguês meios externos de renovação e fortalecimento; 3) visa manter o controle da máquina do Estado para garantir fluidez entre o poder burguês e eficácia política, uma base institucional de auto-afirmação, de defesa, de auto-irradiação coativa e de alcance nacional. 

A forma de dominação burguesa no Brasil pressupõe a defesa consciente, ativa e organizada (quando necessário), pelas classes burguesas, de uma forma especial de solidariedade de classe, que articula mecanicamente, no mesmo padrão de dominação econômica, social, cultural e política, interesses capitalistas nacionais e estrangeiros, convergentes e divergentes, mais ou menos conservadores e mais ou menos liberais, variavelmente compartilhados entre as burguesias de todos os tamanhos (pequena, média e grande). Isso implica em efeitos inibidores no que se refere ao desenvolvimento capitalista e às irradiações da dominação burguesa aos níveis econômicos, socioculturais e político (FERNANDES, 1987). 

Em consequência disso, temos, de um lado, tanto o reformismo burguês (sirvam de ilustração os dilemas decorrentes da reforma agrária e da expansão do mercado interno), quanto o movimento democrático-burguês (sirva de ilustração o amortecimento da radicalização das classes médias) são sufocados a partir de compulsões que emanam da própria dominação burguesa e sua solidariedade de classe. A burguesia nacional converte-se em burguesia pró-imperialista, incapaz de ações antiimperialistas. De outro, essa solidariedade de classe atua como inibe as possibilidades de autonomização progressiva do desenvolvimento capitalista interno, impõe, às classes burguesas, a se omitirem e se anularem diante de tarefas especificamente burguesas, as quais alargariam a amplitude da revolução nacional em processo e o sentido da própria transformação capitalista. Isso faz com que vários focos de desenvolvimento econômico pré ou subcapitalistas mantenham, indefinidamente, estruturas sócio-econômicas e políticas arcaicas ou semiarcaicas operando como impedimento à reforma agrária, à valorização do trabalho, à proletarização do trabalhador, à expansão do mercado interno, etc. 

Sobre a questão do Estado, ela se relaciona com autodefesa, auto-arfirmação e auto-irradiação dos vários estratos da burguesia brasileira. Fernandes (1987) afirma que “Não é fácil conduzir o barco, quando o desenvolvimento capitalista não guia a revolução nacional com uma bússola firme e os subcapitalistas ou précapitalistas de produção agrária, na empresa multinacional estrangeira e na grande empresa estatal.” (p. 307). Nesse sentido, para Fernandes (1987), o Estado nacional não é uma peça contigente ou secundária do padrão de dominação burguesa no Brasil. Ele está no cerne de sua existência e só ele pode abrir às classes burguesas o caminho de uma revolução nacional, tolhida e prolongada pelas contradições do capitalismo dependente e subdesenvolvido. 

Em linhas gerais, os elementos centrais da caracterização da formação social brasileira, feita por Floresta Fernandes (1987), a partir do processo de revolução burguesa pelo alto, é de uma formação hibrida, com a coexistência de formas “arcaicas” e “modernas”, uma formação capitalista dependente e subdesenvolvida, marcada pelo desenvolvimento desigual interno, pela dominação imperialista externa e uma estrutura política autocrática burguesa. 

Nesse sentido, a maneira pela qual funciona e cresce a versão brasileira da sociedade de classes impede, de acordo com Florestan Fernandes (1987): 1º) que eles possam estabelecer (mantidas as condições atuais) qualquer articulação flexível com as pressões dentro da ordem das classes operárias e das classes destituídas; 2º) que eles possam absorver (mantidas as condições atuais) as pressões contra a ordem dessas mesmas classes. Temos aí, uma ordem social que se ajusta como uma luva ao capitalismo dependente e às seqüelas do desenvolvimento desigual interno ou da dominação imperialista externa.     

 

Nota:

(1) Um comerciante rico, mas de origem plebeia, por exemplo, não poderia desfrutar o mesmo prestígio social que um chefe de repartição pobre, mas de “família tradicional” (FERNANDES, 1987).


Referência

FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.