Foto: sinasefe

Por: Átila de Menezes Lima*

1.      O capital é uma relação social histórica e não uma coisa. Como afirma Marx (2013, p.836) “o capital é uma relação social de produção. É uma relação histórica de produção”. Sendo uma relação social, o capital tende a transformar tudo em mercadoria, em valor de troca, inclusive o ambiente e as vidas humanas com fins em garantir o aumento da tendência crescente das taxas de lucro.

2.      O capital possui uma composição orgânica que é inerente a sua forma de ser. Essa composição se divide e se relaciona entre capital constante (maquinários, tecnologias, técnicas, instalações...) e capital variável que é justamente a venda da força de trabalho dos trabalhadores e suas habilidades no processo de criação.

3.      Para manter a tendência crescente das taxas de lucro, as relações do capital, sobretudo no capitalismo que é a nossa atual dimensão histórica de produção da vida material e imaterial, vem modificando a relação entre capital constante e capital variável. Para aumentar os lucros e a produtividade investe-se bastante em tecnologias, maquinários e instalações, ou seja, em trabalho morto e reduz-se o número de trabalhadores (trabalho vivo) criando-se uma massa de desempregados , subempregados e miseráveis. Os trabalhadores que permanecem em seus postos de trabalho tem sua produtividade aumentada com o uso de novas tecnologias e mesmo acumulam outras funções que antes não eram suas sem receber mais por isso. Todo esse processo cria um aumento brutal da exploração das relações sociedade-natureza, aumentando a extração dos recursos da natureza natural e também da exploração da força de trabalho. Estas apesar de ocultadas e fetichizadas na atual conjuntura do capitalismo em sua fase “flexível” estão mais vivas do que nunca.

4.       As técnicas, o aparato tecnológico, não estão autônomos ao movimento da história e nem mesmo são neutras. Muito pelo contrário, são datadas historicamente e possuem intencionalidades. Essas não são forças produtivas em si, muito menos possuem racionalidade própria como assinalam análises estruturalistas e fenomenológicas sobre o assunto. Elas estão inseridas dentro das forças produtivas, são fruto do trabalho humano, da divisão social do trabalho e no capitalismo são utilizadas majoritariamente para a dominação de classes, maior exploração da força de trabalho, monopólio tecnológico, controle social, aumento das desigualdades, geração e concentração de riquezas para poucos... O problema não é a técnica ou as tecnologias em si (elas foram e são fundamentais para a humanidade), mas sim o caráter de apropriação de classes destas e o uso que é dado a ela. Se as tecnologias fossem utilizadas de fato para o bem comum da humanidade teríamos o melhor dos mundos possíveis. No entanto, o que temos de acesso coletivo são migalhas. No capitalismo, especificamente as tecnologias possuem intencionalidades de classe. Vejam: com tanta tecnologia hoje, por que milhares de pessoas não têm se quer saneamento básico? Por que milhares morrem em filas de hospitais se existem excedentes tecnológicos que evitariam as mortes? Por que milhares passam fome se temos excessos tecnológicos para produção de alimento em fartura? Por que existem tantas pessoas com acesso precário ou sem acesso aos pacotes digitais? Por que existem milhares sem energia elétrica? Já pararam pra pensar que essas técnicas e tecnologias estão sob monopólios de grandes grupos empresariais?

5.      Mediante o processo de reestruturação do capital em crise, as tecnologias da informação assumiram papel importante para a fuga das crises e aumento da lucratividade. Primeiro porque ela reduz, enxuga os postos de trabalho, aumenta a produtividade e as taxas de mais valia, sejam nas atividades produtivas ou improdutivas. Ela contribui para a desregulamentação das relações trabalhistas e aumenta a precarização. Vejam os exemplos dos trabalhadores de aplicativos que tem jornada de trabalho ampliada, sem salário certo, sem direitos trabalhistas, condições espoliadas de trabalho, tempo cronometrado e controlado pelos aplicativos, enquanto as grandes corporações donas das plataformas digitais ganham fortunas. Segundo, o monopólio dos pacotes tecnológicos, rende fortunas. A compra desses pacotes pelos estados nacionais geram lucros gigantescos com orçamento público para essas corporações privadas. A tendência decrescente do valor de uso dessas tecnologias (tempo de vida útil dessas formas de mercadorias) também garantem circulação mais rápida das vendas e produção da parafernália tecnológica e seus softwares para a reprodução do capital.

6.      Para o setor educacional, temos um fetiche e uma visão acrítica da incorporação das TICs e das metodologias operacionais modelos da lógica do capital para a educação. Primeiro com a EaD e agora com as ressignificações do capital com formas ainda mais precarizantes, o chamado trabalho remoto. Vinculadas ao grande pacote da educação para a periferia do capital via banco Mundial, as TICs, as metodologias resoluções de problemas para o mundo trabalho e as ideologias das competências e habilidades invadiram e inundaram os currículos, da educação básica á superior. Todas estão bem articuladas à lógica de mercado e da reestruturação produtiva. Vejam, o problema não é somente a questão das condições tecnológicas de acesso a ferramentas digitais ou de admitir que temos infraestrutura precária para EaD. Partir disso em si, já é estar concordando com a EaD, pois o grande capital quando tem necessidades rapidamente equipara o público dessa infraestrutura (com chips, pacotes de internet, softs, computadores) e ainda ganhará lucros aos montes como veremos logo mais sobre o mercado das TICs. As questões são mais complexas como demonstrarei abaixo.

7.      Os impactos para atividade docente são devastadores e tem duas vertentes principais. Uma que vai no sentindo de esvaziamento e empobrecimento didático-pedagógico e científico, reduzidas a técnicas de ensino pragmáticas para o utilitarismo do mercado. Isso vai ocasionar tanto a negação do conhecimento histórico acumulado para as classes mais pobres, assim como a redução dos professores a apêndices de pacotes de conteúdos dos sistemas privados de educação e mesmo a substituição destes, por profissionais sem especialização e aprofundamento chamados “notório saber” e mesmo por mecanismos digitais de aulas gravadas mecanicamente e sem mediações com as particularidades reais, que podem substituir vários professores. Atividade de magistério sendo desqualificada e virando somente bico. A outra vertente vai no sentido da hiper exploração da atividade docente que tem sua carga de trabalho ampliada no tempo e no espaço pois a casa se torna a extensão do trabalho. Temos ainda o produtivismo aumentado, o acumulo de funções que não são suas, a precarização das relações de trabalho, aumento das doenças psicológicas, autoexploração, a competitividade etc... Todas essas questões estão dentro da lógica da reestruturação do capital.

8.      Com o advento da pandemia, escancarou-se as contradições e antecipou-se rapidamente processos que poderiam levar anos para o enfrentamento direto e cru. Aproveitando as brechas abertas pela pandemia os grandes defensores da educação à distância e suas novas formas com nomes diferentes, tentam enfiar de goela abaixo as propostas de atividades que tem sua materialização na venda dos grandes pacotes mercadológicos das TICs. Para termos uma ideia o Brasil era o quarto maior mercado de TIcs no mundo no ano de 2019 e segundo dados da consultoria norte-americana IDC, o mercado brasileiro das TIcs teve movimento financeiro de cerca de US$169 bilhões ficando responsável por 5% dos negócios desse setor no mundo. Segundo Telebrasil (2018) “O mercado brasileiro de Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) somou, em 2017, R$ 349,65 bilhões (com o dólar a R$ 3,33), ou US$ 105 bilhões, e retomou a sexta posição – ocupada pela França em 2016 –, de acordo com dados de pesquisa feita pela consultoria IDC, a pedido da ABES”. Como podemos observar o Brasil saltou da 6ª posição em 2017 para 4ª posição mundial em 2019. As expectativas de crescimento desse setor no início de 2020 foram de 4,9 % segundo IDC Brasil. Ainda segundo IDC Brasil “O mercado brasileiro de TI deve seguir com alta de 5,8% por conta do crescimento do mercado de nuvem e da aceleração no mercado de software, o mercado de telecomunicações terá crescimento discreto de 0,7%, impulsionado pelos serviços de dados. No mercado corporativo, a TI crescerá 7,6% em 2020. O setor como um todo deve acompanhar o movimento das projeções para o PIB nacional, que estão entre 2% e 2,5%”. A IDC ainda afirma que “investimentos em TI, especialmente em hardware, software e serviços de TI, devem aumentar 10% até 2021”. Mediante situação da pandemia e a liberação via MEC para o ensino virtual, é bem capaz que esses números cresçam.

9.      Levando em consideração que o capital é uma relação social que tudo transforma em mercadoria, que as tecnologias estão sob essa lógica, quais são as possíveis consequências do uso das TICs, da EaDs e atividades remotas na e pós pandemia? O momento é escorregadio e perigoso. Devemos estar bem atentos. Um provável desenho é o aprofundamento da precarização e desvalorização docente, substituição de muitos por aulas gravadas e por metodologias mecanicistas, mas com o ar de “novas” que permitem qualquer pessoa sem diploma ou especialização profunda à dar uma aula, rebaixamento teórico dos conteúdos, aprofundamento da iniciativa privada nas atividades públicas, monopólio tecnológico privado em ambiente público, privatizações, redução do quadro de professores. Questões que ficam: quais os problemas neurológicos, psicológicos, de humor, de visão podem ser desenvolvidos em crianças e adultos ao ficarem expostos a uma sobrecarga de horas em frente às telas digitais? O que será dos professores mais velhos que não conseguirem se adaptar as formas “digitais” de trabalho? Serão descartados? Qual a qualidade do ensino-aprendizagem nessa modalidade de ensino? Uma coisa é certa, quando aderimos algo sem um aprofundamento teórico e sem enfrentamento, assumindo a lógica pragmática e voluntarista do capital, cavamos nossa própria cova de forma voluntária a caminho da servidão...

*Professor Adjunto do curso de Geografia da Universidade Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF

Referências

MARX, Karl. O capital: Crítica da Economia Política. Livro I. O processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle, São Paulo: Boitempo, 2013. 

Sitios eletrônicos

https://www.terra.com.br/noticias/dino/brasil-e-o-4-maior-mercado-de-tic-do-mundo-movimentando-us169-bilhoes-e-pode-crescer-com-o-acordo-com-a-uniao-europeia,d03b0d45dba44e984855fbd4434bd9f4rjbtjytp.html

https://tiinside.com.br/07/02/2020/mercado-de-tic-deve-crescer-49-no-brasil-em-2020-segundo-a-idc-brasil/

http://www.telebrasil.org.br/newsletter/020_09mer.html